A luta por uma infância digna ainda é grande e deve ser nossa prioridade absoluta. São vários os sabotadores da infância que precisam ser combatidos. Eles vão desde aspectos caracterizados pela escassez, até o outro extremo, os excessos da sociedade.
O desenvolvimento saudável da Primeira Infância é a base da prosperidade econômica e justiça social de uma nação. Sabemos que as primeiras experiências da vida de uma criança são incorporadas por ela, permanecendo por toda a vida. O que é vivenciado na infância afeta o aprendizado, o comportamento, saúde, e segue reverberando ao longo da existência de cada indivíduo. Por isso, os sabotadores da infância que apontaremos aqui, precisarão ser encarados com seriedade em todas as esferas.
Nos próximos artigos no Educando Tudo Muda vamos falar um pouco sobre cada um dos sabotadores da infância. Queremos aprofundar um a um.
SABOTADORES DA INFÂNCIA
- TRABALHO INFANTIL
O trabalho infantil é um dos mais vis sabotadores da infância, um grave problema que enfrentamos no país. Mais de 2,670 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, trabalham no Brasil, segundo informações da Rede Peteca/Chega de Trabalho Infantil. O trabalho infantil está ligado às atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não.
Pesquisa divulgada pela OIT – Organização Internacional do Trabalho, constata que o setor que mais explora a mão de obra infantil no mundo, é o agrícola, representando 58,6%, seguido pelo setor de serviços, com 32,3%, sendo 6,9% em serviços domésticos, e do setor industrial, correspondendo a 7,2%.
O trabalho na agricultura expõe a criança a uma série de riscos: intoxicação por agrotóxicos, queimaduras solares, transporte de peso excessivo, instrumentos cortantes, etc.
O corpo da criança está em formação. Ossos e músculos ainda não estão totalmente desenvolvidos e podem sofrer deformações. Fígado, baço, rins, estomago e intestinos estão mais sujeitos à intoxicação.
Com relação ao trabalho doméstico, as meninas são as que mais sofrem. Muitas trabalham apenas por comida ou roupa, sem remuneração. Elas correm maior risco de violência física, psicológica e abuso sexual.
A Constituição Federal proíbe o trabalho infantil. A idade mínima para o trabalho é de 16 anos. Antes disso, a partir dos 14, o adolescente pode ser apenas aprendiz.
O trabalho precoce prejudica a vida toda de um indivíduo. Compromete a infância pela falta do brincar, e aprender. Prejudica a escolarização e acaba levando ao abandono escolar. Uma criança que entra no mercado de trabalho dessa maneira, receberá um salário menor por toda a vida.
Muitas vezes esta realidade parece distante de nós, mas basta circular pelas feiras livres da cidade para constatar a presença de crianças trabalhando. Recentemente no Carnaval de rua da cidade de São Paulo, muitas crianças trabalharam duro ao lado de vendedores ambulantes.
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Foto: Débora Klempous/Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil
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Foto: Tiago Queiroz/Rede Peteca
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Foto: Débora Klempous/Rede Peteca
O trabalho infantil causa danos enormes sobre o aspecto físico, emocional, intelectual e social da criança, que é um ser em formação – fadiga excessiva, distúrbios do sono, problemas respiratórios, lesões, fraturas e evasão ou baixo rendimento escolar são algumas de suas consequências, além da privação de crianças e adolescentes de uma infância e desenvolvimento saudável, resultando na perpetuação de ciclos de pobreza, miséria e desigualdade.
12 de junho institui-se Dia do Combate ao Trabalho Infantil. A data foi criada para mobilizar organizações e toda a sociedade em prol da erradicação do trabalho infantil, chamando atenção para as infâncias e adolescências invisibilizadas
2. ALFABETIZAÇÃO PRECOCE
A aceleração do letramento é um dos sabotadores da infância mais desrespeitosos à natureza da criança. Faço parte de uma geração que passou os primeiros anos de vida brincando em casa, com amigos da vizinhança, cuidando da minha cachorrinha, ouvindo histórias, andando de bicicleta nas ruas do meu bairro, e assim descobrindo e explorando o mundo. Na pré-escola , até os 7 anos, aprendi muitas canções, ouvi muitas histórias, desenhei, pintei, recortei, colei, pulei corda, brinquei de roda, casinha, médico, professora. Aprendi a dividir com os amiguinhos, jogar de acordo com as regras, pedir desculpas quando necessário, cuidar das plantinhas, guardar e arrumar o que tirava do lugar, não mexer no que não fosse meu.
Há uma grande diferença entre a minha vida de menina e a vida das crianças nos dias de hoje. Os anos pré-escolares se transformaram em uma competição acadêmica exaustiva. A Educação Infantil ficou muito parecida com o Ensino Fundamental, por causa da ênfase na alfabetização.
Atividades que requerem que a criança seja capaz de se sentar em uma mesa e completar uma tarefa usando lápis e papel, que antes estavam restritas às crianças de 5 e 6 anos de idade, são agora dirigidas às crianças ainda mais novas, que não têm habilidades motoras e não têm a capacidade de concentração para isso, com exigências de que devem concluir seus trabalhos e atividades, antes que possam ir brincar.
Na contra mão desta aceleração,
especialistas afirmam que o aprendizado formal é mais produtivo a partir dos 6 anos de idade, pois é quando as crianças são mais capazes de lidar com ideias abstratas. Afirmam também que crianças que chegam à escola socialmente adaptadas, que sabem seguir instruções, compartilhar, ajudar os amigos, terão mais chance de dominar a escrita, a leitura, e os números.
Em 2007, o Conselho de Pesquisa Econômico e Social da Inglaterra publicou um documento que contou com a participação de dezessete especialistas de diversas universidades europeias interessados na discussão entre a neurociência e a educação, que diz o seguinte:
“Contrariando a crença popular, não existem evidências neurocientíficas que justifiquem começar a educação formal o quanto antes. A plasticidade do cérebro é um fenômeno que dura a vida inteira, não somente nos primeiros anos.”
O trabalho nos primeiros anos de vida com a criança deve estar focado no desenvolvimento integral do ser humano, centrado no amadurecimento emocional, psicológico e social da criança.
3. DÉFICIT DE NATUREZA
Estatísticas mostram que 80% da população brasileira vive em cidades e que as crianças que moram nos grandes centros urbanos passam 90% do seu tempo em locais fechados, dentro de casa, em frente da televisão, jogando vídeo games, ou nas escolas dentro de salas de aula. Quando saem com os pais vão ao shopping, restaurante ou cinema.
Segundo dados do relatório Children & Nature Network, as crianças brasileiras estão entre aquelas que tem menos contato com a natureza. Doenças que passaram a ser comum entre as crianças nos dias de hoje, tais como transtorno de hiperatividade, déficit de atenção, depressão, pressão alta e diabetes, obesidade, estão diretamente ligadas com a falta de natureza.
Um movimento de retorno à natureza está se espalhando pelo mundo e já chegou ao Brasil. Trata-se do movimento de incentivar as crianças a brincar ao ar livre, em áreas verdes. Uma pesquisa recente mostrou que 40% das crianças brasileiras passam uma hora ou menos ao ar livre. Um número inexpressivo. A expressão Transtorno do Deficit de Natureza está circulando e sendo usado por pediatras, psicólogos, educadores. Médicos já estão prescrevendo natureza para as crianças.
O que a falta de natureza pode causar?
-musculatura fraca, pela falta de atividade física
-falta de equilíbrio, pelo predomínio de pisos lisos, cimentados que oferecem pouca oportunidade de instabilidade na movimentação corporal
-obesidade infantil, associada a maus hábitos alimentares
-deficiência de vitamina D
-aumento de incidência de miopia
-menor uso dos sentidos
-ansiedade
Os benefícios da natureza já estão comprovados. Mais tempo ao ar livre regula hormônios, reduz a agressividade, hiperatividade e obesidade. Sucesso vem sendo obtido no tratamento de transtorno de déficit de atenção, depressão, e até mesmo quadros alérgicos, pois o contato com os antígenos naturais no campo ou na praia fortalece o organismo. Além disso, aumenta a capacidade cognitiva, e as crianças ficam mais focadas e criativas.
Uma caminhada por uma mata fechada é capaz de promover bem estar e tranquilidade. Assim que os odores da mata adentram o organismo humano, os níveis de estresse e irritação diminuem. A exposição mais prolongada e intensa ao cheiro do verde pode reduzir a pressão arterial e fortalecer nossa imunidade.
Entre os sabotadores da infância apresentados, a desconexão com o mundo natural é aparentemente o mais simples de se resolver, entretanto requer esforços das famílias e das escolas para que se reverta este cenário de afastamento e se estabeleça novos hábitos de conexão no cotidiano das crianças.
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4. USO EXCESSIVO DA TECNOLOGIA
O acesso precoce e abusivo dos dispositivos digitais por crianças pequenas, é um dos sabotadores da infância que vem “trabalhando” em silêncio há algumas décadas e que agora explode de maneira assustadora.
Hoje já são oito milhões de pessoas viciadas em internet no país, segundo o Grupo de Dependência Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. De acordo com o Dr. Cristiano Nabuco, psicólogo e coordenador do Grupo, a situação é preocupante. Ele tem atendido casos de crianças viciadas em smartphones, videogames e tablets, incapazes de se relacionar sem ser virtualmente, de manter a concentração, dar sequência a um raciocínio lógico. Há casos de crianças com um pouco mais de 2 anos de idade que não comem, nem vão para a cama se não tiverem o aparelho ao lado.
A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria é que crianças menores de 3 anos não tenham acesso e nem sejam expostas passivamente aos aparelhos tecnológicos. Às crianças maiores, a orientação é de limitar o uso ao máximo uma hora por dia. Recomenda-se ainda que crianças de 0 à 10 anos não tenham TV no quarto.
Por que pais e educadores devem ficar atentos ao acesso tecnológico precoce e intenso?
O Dr. Cristiano Nabuco explica que “nosso cérebro sofre um processo de amadurecimento que só é finalizado após a maioridade, aos 21 anos. A região do córtex pré-frontal é a última área a ser finalizada, e o córtex é responsável pelo nosso raciocínio lógico e também pelo controle dos impulsos, nosso freio comportamental”. E mais: “existem operações mentais que precisam naturalmente serem feitas e o grau de estimulação de um tablet desrespeita essa ‘ecologia’, essa natureza de desencadeamento da lógica”.
Já se sabe por meio de estudos que quanto mais a criança ficar exposta a tecnologia, piores serão suas funções cognitivas, como a memória e desenvolvimento da atenção. O uso precoce e excessivo da tecnologia na infância pode prejudicar o desenvolvimento infantil, causando dificuldade de concentração, má qualidade do sono, sedentarismo, problemas de saúde mental, atraso de aprendizagem, entre outros distúrbios.
O mais interessante é que pais que trabalham no Vale do Silício, a meca tecnológica dos EUA, executivos de grupos como Google, Apple, Hewlett-Paackard, eBay, etc, tem preferido matricular seus filhos em escolas que sequer têm wi-fi. Não é a tecnologia usada em sala de aula o que julgam importante para o aprendizado da criança, e sim a filosofia de aprendizagem. Tudo porque eles entendem que a tecnologia de hoje será obsoleta amanhã, e que o relevante é o estímulo à criatividade, curiosidade, habilidades artísticas, e a capacidade de mudanças. O próprio Steve Jobs foi um pai low-tech que controlava e limitava a quantidade de tecnologia aos filhos dentro e fora de casa.
As crianças só migram para a tecnologia porque estão confinadas em casa. Pense nisso.
5.AGENDA LOTADA
Este é um dos sabotadores da infância mais sutis, que passa desapercebido pela maioria de nós. Já parou para pensar na complexidade das agendas infantis atualmente? Muitas crianças mantêm uma agenda que faria qualquer CEO adoecer. As crianças são levadas de um compromisso a outro, de segunda-feira à sábado. Suas agendas estão lotadas de cursos extracurriculares, do balé para o inglês, mandarin, da yoga para o Kumon, e também natação, judô, piano, etc… Muitas crianças têm atividades extracurriculares no mínimo três vezes por semana, ultrapassando 50 horas semanais de atividades, entre escola, cursos, esportes e reforços escolares.
O que pretendemos com isso? Formar uma super geração competitiva? Prepará-los para o sucesso? A superestimulação promovida pelos adultos tem levado as crianças ao esgotamento. Estímulo demais, concentração de menos. Estamos adoecendo nossas crianças.
Esquecemos que elas desde cedo tem no próprio ambiente natural, familiar, estímulos suficientes para seu desenvolvimento. Os estímulos externos criados artificialmente pelos adultos com o intuito de acelerar o desenvolvimento, anulam o que a criança tem de mais precioso que é sua motivação interna, alimentada por sua curiosidade inata.
O não fazer nada para a criança é muito importante, é o momento que ela faz de conta, inventa brincadeiras, faz seu brinquedo. O tempo livre, o “tédio”, nada mais é que a oportunidade da criança entrar em contato consigo mesma, estimular o pensamento, a fantasia e a concentração.
6.MEDICALIZAÇÃO INFANTIL
Você sabia que o Brasil é o segundo maior consumidor mundial de Ritalina? Trata-se de um medicamento indicado para o tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Em 2010 foram vendidas cerca de 2 milhões de caixas, um aumento de 775% na última década, segundo a Anvisa.
Estamos vivendo um momento de patologização extrema de comportamentos infantis. Milhares de crianças estão sendo diagnosticados com algum tipo de transtorno: Transtorno de Défict de Atenção, Hiperatividade, Transtorno Desafiador Opositor,Transtorno Obssessivo Compulsivo, Transtorno do Comportamento Disruptivo, Transtorno Desintegrativo, Transtorno de Ansiedade, Dislexia e por aí vai. Até mesmo crianças pequenas estão engolindo antidepressivos com leite.
Com a justificativa de melhorar o desempenho escolar, as conquistas de desenvolvimento que não acontecem no período esperado, e promover mudanças comportamentais não aceitas socialmente, o medicamento tarja preta, Ritalina, Concerta , tem sido prescrito, para tornar as crianças “obedientes, disciplinadas e concentradas”. Este é um dos sabotadores da infância mais covardes.
Para se ter uma ideia da gravidade da situação, já temos uma entidade voltada para o tema, a Associação Brasileira de Cientistas para Desconstrução de Diagnósticos e Desmedicalização, além de um curso com este foco, “Da palmatória a ritalina – especialização em desconstrução de diagnósticos para desmedicalização”.
Atualmente já são quase 500 tipos descritos de transtornos mentais e de comportamentos, segundo o Manual de Diagnósticos e Estatísticas de Doenças Mentais. Coisas normais da vida como a timidez, a teimosia, ou até mesmo a rebeldia infantil, estão sendo enquadradas em algum tipo de transtorno. É a normalidade e as diferenças individuais sendo medicalizadas.
Precisamos fomentar este debate em prol da saúde da criança e enfrentar cada um dos sabotadores da infância de frente. Sopre esta semente ao vento, há de cair em solo fértil e tornar-se árvore frondosa. Participe deixando seu comentário e compartilhando este artigo.
abraço carinhoso
Ana Lúcia Machado