"A infância não é uma coisa que morre em nós e seca uma vez cumprido o seu ciclo. Não é uma lembrança. É o mais vivo dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que o saibamos"
Franz Hellens
Você conhece a força da sua infância?
Passo minhas férias, na maioria das vezes, à beira mar, e nos últimos anos percebi o quanto este ambiente permeou minha infância, imprimindo marcas que ainda hoje se encontram registradas dentro de mim. Na paisagem marinha, contemplando a espuma branca das ondas em seu eterno ir e vir, ao som da rebentação, e respirando o odor inigualável da maresia, é que me renovo e me fortaleço interiormente. Reconheço nesta paisagem, imagens estruturantes da minha vida.
As lembranças da menininha de 04 anos segurando firme a mão da avó para pular as ondas do mar, são vivas dentro de mim. Os incontáveis castelos que construí na areia da praia permanecem intactos no meu íntimo. Essas vivências foram marcantes e prazerosas. Momentos de pura alegria e entrega, experimentando o sabor da água salgada do mar, pulando e correndo das ondas, afundando os pequenos pés na areia à beira mar.
A infância é o período no qual se aprende sobre todas as coisas essenciais da vida, é o solo sob o qual edificamos nossas vidas. Nessas vivências apoiamos nossa consciência adulta.
Na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, Alessandra Sanguinetti expos uma série de fotografias das primas Guille e Belinda. As primas cresceram juntas na zona rural próximo a cidade de Buenos Aires, Argentina. Fotografadas durante 20 anos, desde a infância até a vida adulta, este trabalho, delicado e sensível, revela a potência da infância. “Somos reflexos absolutos de tudo o que vimos. Sinto que aparecem pequenas profecias de como será a vida de uma pessoa durante a infância. A infância determina o contexto e a estrutura da personalidade que uma pessoa desenvolverá pelo resto de sua vida.” refletiu Sanguinetti ao concluir esse trabalho.
As vivências da infância são um pote enorme onde a gente enfia a mão toda vez que vai buscar uma sensação. – Marina Colasanti
Feche os olhos e deixe vir à consciência um momento da sua infância. Qual a brincadeira favorita? Com quem você brincava? Alguém te contava histórias? Quais músicas você se recorda? Quais são as lembranças mais marcantes de sua infância?
Todas essas perguntas servem de portais para o acesso a criança interior que vive dentro de cada um de nós.
Conhecer outras infâncias e passear por elas também é algo extremamente provocador e reavivador de nossa criança interior.
Já visitei várias infâncias e enriqueci minha própria infância alimentando me de cada uma delas. Conheci o maroto “Menino no espelho” Fernando Sabino. Mergulhei no “Mar de dentro” de Lya Luft, passei pelas “Memórias inventadas” do saudoso poeta Manoel de Barros, visitei também as memórias de infâncias de Rubem Alves, Paulo Freire. Ri, chorei, me emocionei com cada história lida.
Manoel de Barros por exemplo fala lindamente da sua comunhão com a natureza quando menino, dizendo:
“Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.”
Fernando Sabino fala de memórias de ar, relata lembranças de brincadeiras no quintal, no bambuzal:
“Uma das brincadeiras que a gente fazia ali era a de se dependurarem vários meninos num dos bambus, fazendo com que ele se entortasse até que tocassem o pé no chão. Em dado momento todos a um só tempo largavam o bambu, menos o que estivesse na ponta: este continuava dependurado e subia como um foguete, agarrando-se com todas as forças ao bambu para não ser atirado longe. E ficava balançando de um lado para outro lá em cima, como um pêndulo, até que o movimento parasse de todo e ele pudesse vir escorregando bambu abaixo.”
E Paulo Freire? Este, em seu livro “À sombra desta mangueira”, diz que sua infância estava repleta de sombras:
“Meu primeiro mundo foi o quintal de casa, com suas mangueiras, cajueiros de fronde quase ajoelhando-se no chão sombreado, jaqueiras e barrigudeiras. Árvores, cores, cheiros, frutos, que, atraindo passarinhos vários, a eles se davam como espaço para seus cantares”
Rubem Alves por sua vez, faz referência ao fogo em vários trechos de seu livro “Quando eu era menino”:
“Quando fazia frio, meu pai punha uma bacia cheia de brasas no chão e nós nos assentávamos à volta das brasas. Tudo escuro, apenas os rostos avermelhados pelo vermelho das brasas. A gente tirava os sapatos e esticava os pés na direção do fogo.”
Acessar as lembranças de infância traz renovação, força e criatividade. Reconectar-se com nossa criança interior, nos auxilia no relacionamento e educação dos filhos, na compreensão e vínculo com alunos. Nesta trajetória você descobrirá que existe uma memória imaginária a ser explorada, não é preciso se ater a fatos reais na linha do tempo. A infância ultrapassa esses limites e avança para uma memória reinventada, pois aquele que recorda não é mais o mesmo que vivenciou tudo aquilo. O vivido, o sonhado e imaginado se fundem, fazendo renascer a força de nossa infância.
Certas manhãs despertam
O suave sabor da saudade
Saudade do laço de fita
Do brilho inocente no olhar
A alma pulsa contente
Recorda dias distantes
Da pequena menina que ficou para trás.
Certas manhãs despertam
O doce aroma das flores
Brancas, vermelhas e amarelas
Colhidas pelo caminho
A alma pulsa contente
Acorda lembranças de longe
De dias vividos brincando
Brincando de ser feliz.
Certas manhãs despertam
O alegre som dos sabiás
Que muita harmonia trouxeram
À sinfonia da vida
A alma pulsa contente trazendo de volta
O balanço, os pulos e a trança
Fazendo sentir novamente
A força de minha infância.
Ana Lúcia Machado
Rinaldo
Uma sensibilidade ímpar para retratar momentos que ficaram guardados em nossa memória, e que por vezes esquecemos de relembrar. Temos hábito de assistir a um filme, a um programa que gostamos na tv, mas não temos o hábito de reviver os melhores momentos de nossas vidas.
Com seu jeito poético de lembrar, você nos faz viajar no tempo e reviver o que tanto nos marcou com alegria, prazer emoção e amor.
Obrigado Ana Lucia por este presente!
Ana Lúcia Machado
Amei a metáfora! Cada infância inspira roteiros de belíssimos filmes!Que tal escrever a sua história?
Maria Alice Guedes
Esplêndido! Lembrar da nossa criança nos faz enternecer! E ler as citações que você, habilmente, reproduz nesse belo texto, enriquece a nossa alma. Tens razão: a nossa criança precisa ser resgatada todos os dias para nos alimentar da força do lúdico e da comunhão com a natureza. A nossa natureza!
Obrigada por essa especial nutrição.
Maria Alice Guedes
Ana Lúcia Machado
“Volta ao começo;
Torna-te outra vez criança”
Sábias palavras de Tao Te Ching