VOCÊ TEM FOME DE QUÊ? – De noite na cama
O sono parecia ter desaparecido no meio da noite. Permaneci de olhos fechados, sem me revirar na cama, afinal não queria perturbar o sono da casa toda.
Não sei que horas eram, nem quanto tempo fiquei ali tentando adormecer de novo. Nenhuma preocupação aparente, nenhum pensamento perturbador, nem dor.
No silêncio da madrugada os pequenos ruídos, tornam-se enormes barulhos – o pingo de água na pia do banheiro, a respiração do companheiro ao lado, os movimentos do cachorro do vizinho pelo jardim.
Nesta escuta atenta, me pareceu possível ouvir até o sangue circulando pelas veias. Com certeza um exagero, uma fantasia, mas sem dúvida pude ouvir o ronco do meu estômago.
Fome, foi que o pensei de imediato. Será que estou com fome e por isso não consigo dormir? Levantei, pé ante pé. Fui até a cozinha. Abri a porta do armário e olhei o que poderia comer àquela hora da madrugada. Sim, torrada pensei, ao ver o pote cheio de torradas fresquinhas que havia preparado no dia anterior. Peguei o pote, requeijão na geladeira e preparei um chá.
Me sentei à mesa e comecei a comer, olhando a escuridão da noite pela janela. Mas mal consegui comer uma torrada inteira. Não estava com fome, conclui. Levantei, apaguei a luz da cozinha.
Ao passar pela sala, parei em frente a estante de livros e meus olhos, como a me comandar, passearam pelas prateleiras, até que encontraram Cânticos, de Cecília Meireles.
Peguei o livro, acendi a luminária ao lado da poltrona e sentei. Abri em uma página aleatória. Li um cântico, li dois cânticos e pausei, a degustar com vagar aqueles versos.
Prossegui – comi mais um e mais outro, até esvaziar o pote. Fiz mais uma pausa e de repente bocejei. Aí percebi que a fome, sim, foi o que me fez despertar no meio da noite. A fome da alma, que saciada e silenciosa, adormeceu comigo.
VOCÊ TEM FOME DE QUÊ? Pelo que anseia a sua alma? Que alimento você oferece à ela?
Finalizo com dois Cânticos:
Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa,completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.
Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro.
Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.
Este livro me acompanha e nutri minha alma desde 2000. Já presenteei muitas amigas e amigos queridos com ele. Há uma edição mais atualizada, veja AQUI, mas adoro a capa dessa edição da Editora Moderna. São 26 poemas, escritos em 1927, quando Cecília Meireles ainda não era uma celebridade literária. Eles tem uma relação com o Oriente. Pesquisadores da obra da autora falam que ela leu e estudou a poesia oriental do indiano Rabindranath Tagore. Vale a pena tê-lo sempre à mão.
Abraço
Ana Lúcia Machado