Lavoura Arcaica - Tempo from Gláucio Dutra on Vimeo.
Há épocas do ano em que ficamos mais reflexivos, principalmente quando nos encontramos próximos a datas de grandes celebrações.
A semana passada li de Mario Sergio Cortella, o livro “Por que fazemos o que fazemos?” Várias questões me chamaram a atenção nessa leitura. Uma delas diz respeito a uma importante característica do ser humano: somos seres de insatisfação.
Cortella cita em seu livro o filósofo alemão Martin Heidegger, que denomina essa característica humana de sensação do oco, angústia. E para deixar bem claro o significado dessa angústia, que neste caso não é algo negativo, o autor traz o exemplo de um antigo joguinho infantil feito de plástico, um quebra cabeças, onde era preciso movimentar as pecinhas para formar uma palavra, frase, sequência numérica , ou até mesmo uma imagem. Para movimentar o jogo e ordenar as peças, de modo a formar uma sequência lógica, era essencial um espaço vazio, senão não havia movimento. Com esse exemplo simples, conclui-se que a lacuna interior no ser humano, sua sensação de vazio, é o que cria possibilidades, e liberdade ao ser humano.
Cortella escreve:
“O que é ser humano? É a capacidade de ter essa lacuna. Uma vez preenchida, estamos desumanizados.” UAU! Forte, não é mesmo? E mais adiante ele acrescenta: “Nesse sentido, um nível de insatisfação é extremamente benéfico para nós, porque ele impede o nosso automatismo.”
Essa característica humana foi ao longo do tempo sendo totalmente deturpada, e com isso criou-se a indústria do entretenimento, a sociedade de consumo, e as mais diversas distrações, assim como leis, moda, fantasias, tecnologias, medicamentos, etc… Tudo pensando em oferecer satisfação imediata ao ser humano, preencher a sensação de vazio existente. Cortella nos ajuda a refletir sobre a maneira que somos desumanizados, e mais, a maneira que o sistema usa para tirar nossa liberdade e nos escravizar, tornando nos robôs.
Nossa sociedade está submetida a um sistema que tem por objetivo roubar o que temos de mais importante: a vida, a consciência e o tempo. Nossa cultura nos distrai a todo momento das coisas que realmente importam, vai criando tantas necessidades supérfluas, que vamos nos afastando cada vez mais do que é essencial para o ser humano. Deixamos de lado o verdadeiro sentido da vida. Perdemos com isso a sensação de vazio, pois somos estimulados constantemente a encher de coisas nossas lacunas.
Somos pressionados e comprimidos do Carnaval até o Natal, ano após ano. Nem bem rasgamos a fantasia e os ovos de Páscoa já estão esbarrando em nossas cabeças nos corredores dos supermercados, fragmentando o nosso ser. Não nos permitem um tempo de preparação para os eventos da vida, para as épocas do ano, para as mudanças de estação. Somos atropelados com apelos de consumo, de modismo, de novidades. Criamos um museu de grandes novidades, como canta Cazuza. Estamos sempre correndo, comprando, fazendo, consumindo.
Esta aceleração do tempo, a antecipação constante dos eventos, nos rouba a consciência, a percepção, a capacidade de reflexão e o tempo natural de maturação de todas as coisas. Recentemente escrevi aqui no blog sobre a ausência de vivências de processos http://www.educandotudomuda.com.br/do-fast-food-ao-viagra-onde-ficam-os-processos/. Hoje tudo nos chega pronto: alimento, roupa, diversão, até mesmo o prazer chega em cápsulas, prontinho prá ser consumido. Com o imediatismo de tudo, não sabemos mais o tempo que as coisas levam até o estado de prontidão. Acima de tudo não sabemos mais esperar as respostas de um mundo verdadeiro e com isso nos iludimos achando que estamos nos apropriando de algo, quando na verdade o que nos chega não possui mais sua essência natural, é uma imitação, algo falso. Como diz o ditado, levamos gato por lebre, isto é, alimento por batata chip, prazer por êxtase, paz por tranquilizantes.
A época que antecede o Natal, chamada de Advento, que significa chegada, é uma época riquíssima de vivências de processos. É um período mágico para as crianças e nos dias de hoje, onde tudo está tão acelerado e as grandes celebrações tão carentes de atenção e rituais, parar para preparar e saborear este período com as crianças, seja na escola ou em casa, é um verdadeiro tesouro que podemos oferecer à elas.
Como sugestão, fica aqui uma dica sobre a montagem do presépio. Você pode fazê-lo em etapas, não tudo de uma vez. Comece quatro semanas antes do Natal, se for possível. Primeiro monte o cenário de fundo e traga pedras para enriquecer este espaço. Na segunda semana será a vez dos vegetais. Escolha com as crianças ramos no jardim ou parque, colha folhas verdinhas para enfeitar o cenário. E que tal enquanto for trabalhando com elas, ir cantando algumas canções natalinas? Na terceira semana chegará a vez dos animais: o burrinho, o boi, e a ovelhinha. Ah, é interessante que todas as vezes que chamar as crianças para a montagem do presépio, você acenda primeiramente uma vela. Por fim, na quarta e última semana, vocês introduzirão os personagens, Maria, José e os pastores. E na noite de Natal, sem que as crianças percebam, coloque na manjedoura o menino Jesus.
Esta é uma proposta de ricas vivências e reforço de vínculos de amor com as crianças. Uma oportunidade de crescimento em família. Uma forma de saborear a espera longa e segura das grandes celebrações!
Desejo à todos um Feliz Natal, e deixo como presente o texto abaixo:
abraço caloroso
Ana Lúcia Machado
O tempo é o maior tesouro de que o homem pode dispor.
Embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento.
Sem medida que o conheça, o tempo é contudo
nosso bem de maior grandeza, não tem começo, não tem fim.
Rico não é o homem que coleciona
e se pesa num amontoado de moedas
nem aquele devasso que estende mãos e braços em terras largas.
Rico só é o homem que aprendeu piedoso
e humilde a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura,
não se rebelando contra o seu curso, brindando antes com sabedoria,
para receber dele os favores e não sua ira.
O equilíbrio da vida
está essencialmente nesse bem supremo,
E quem souber com acerto
a quantidade de vagar ou de espera
que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco
ao buscar por elas e defrontar-se com o que não é.
Pois só a justa medida do tempo
dá a justa natureza das coisas.”
Raduan Nassar
Lavoura Arcaica