Sou colecionadora de infâncias. Isso mesmo, coleciono primeiras memórias. Tenho em minha coleção a infância de muitas crianças. Entre elas a de Rubem Alves, Fernando Sabino, Manoel de Barros, Lya Luft, Érico Veríssimo, José Saramago, Pablo Neruda , e outras. A lista é grande.
Recentemente entraram na minha coleção as passagens marcantes da infância de Antonio Prata, descritas em seu livro “Nu, de botas”. Não haveria melhor maneira para iniciar suas memórias do que “No princípio, era o chão”. É deste patamar que a criança começa a enxergar o espetáculo do mundo e apreendê-lo.
Para nós adultos, é difícil entender a lente pela qual as crianças veem o mundo. Porém, se conseguirmos exercitar nossa visão, teremos diante de nós a chance de nos reencantarmos com as coisas simples da vida.
Janusz Korczak, pediatra e educador (1878-1942), profundo conhecedor da alma da criança, advertia aos que se declaravam cansados do convívio com crianças dizendo:
– Vocês dizem ainda: “Cansa-nos porque precisamos descer ao seu nível de compreensão”. Descer. Rebaixar-se, inclinar-se, ficar curvado. Estão equivocados. Não é isso o que nos cansa, e sim o fato de termos de elevar-nos até alcançar o nível de sentimentos das crianças. Elevar-nos, subir, ficar nas pontas dos pés, estender a mão. Para não machucá-las”.
Nesta coleção, em primeiríssimo lugar está a minha própria infância, a menina que fui, que permanece em mim e continuo sendo, pois a infância não é um tempo perdido, continua a existir e reverberar ao longo da existência, como afirma Franz Hellens ao dizer: “A infância não é uma coisa que morre em nós e seca uma vez cumprido o seu ciclo. Não é uma lembrança. É o mais vivo dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que o saibamos”.
Não se trata de romantizar a infância, nem de ser nostálgica, trata-se apenas de significá-la, dando lhe o devido valor. Infância é fundamento, base da vida, terreno sob o qual erguemos nossa existência, daí sua relevância. Infância faz parte da gente e deve estar sempre à mão para ser lembrada. Talvez se políticos, pais, educadores, toda a sociedade, tivessem a consciência da sua importância, daríamos maior atenção ao começo da vida, haveria maior investimento por parte dos governos para o cuidado com a primeira infância.
MAS PARA QUE SERVE RECORDAR A INFÂNCIA?
Para responder esta pergunta, recorro a uma das mais enigmáticas infâncias da minha coleção, a infância de Binjamim Wilkomirski. Binjamim, que teve sua infância nos atribulados anos de 1939 à 1948, vivendo os horrores dos campos de concentração nazista, surpreende ao dizer que “Quem não se lembra de onde vem jamais saberá ao certo para onde está indo”. Suas memórias estão relatadas em um pequeno livro intitulado “Fragmentos”.
Partindo deste aspecto norteador das memórias de infância, quero compartilhar uma experiência desta semana. Em uma reunião numa escola, conversando com a diretora e proprietária da instituição, para falar do projeto Playoutside – alegria de brincar na natureza, me chamou muito a atenção um comentário feito por ela dizendo que os pais atuais dão a impressão de terem se esquecido de sua própria infância.
As memórias de infância são grandes aliadas no processo de educação dos filhos. Elas dão força e ao mesmo tempo nos tornam mais sensíveis ao universo infantil, por nos aproximar da essência da criança.
Enquanto as crianças são pequenas e crescem, temos diante de nós a oportunidade de revivermos nossa própria infância. É um período rico de crescimento para os pais também, pois a maternidade e a paternidade são uma construção contínua. Quando a criança nasce, o ser mãe, e o ser pai, nascem juntos. Vamos amadurecendo e nos desenvolvendo como pais à medida que o bebê vai crescendo.
A lembrança que carregamos da nossa eterna criança, enriquece a relação com os filhos. Recordar nossas brincadeiras favoritas, as histórias que ouvíamos, o que gostávamos de comer, é uma fonte inesgotável de prazer e alegria. Trata-se de uma ferramenta poderosa que podemos usar no dia a dia com as crianças.
Com essas lembranças revivemos sentimentos imbuídos de força que nos ajudam a seguir com a tarefa desafiadora de educar. Resgatar esses sentimentos ativa nossa intuição e nos torna mais confiantes. Mais do que dicas de livros que nos sugerem como agir com os pequenos, o que realmente precisamos é nos ancorar na sabedoria que carregamos dentro de nós por meio de nossas próprias experiências como adultos e crianças.
Diante do novo, do desconhecido que se apresenta à nossa frente ao longo do desenvolvimento da criança, é preciso se permitir o estado de dúvida e o tempo de amadurecimento das respostas. Não existe resposta pronta, imediata, como receita de bolo, pois cada criança é singular e a resposta vem da relação com a própria criança, é o que orienta a psicanalista Julieta Jerusalinsky. Como especialista em clínica infantil, a psicanalista faz uma séria advertência dizendo que “os pais nunca estiveram tão destituídos do saber como estão na atualidade”.
Podemos afirmar que nossas memórias de infância tem a função de guardiã e facilitadora da infância de nossos filhos, ativando nosso lado intuitivo e resgatando nossa confiança.
Mas, os benefícios que tais lembranças trazem, não param por aí. No livro “Criança brincando! Quem a educa?”, a pedagoga Luiza Lameirão aponta outros aspectos positivos que essas recordações podem oferecer:
Sendo assim todos saem ganhando, pais e filhos.
Gaston Bachelard, filósofo e poeta francês, fala que “o devaneio voltado para a infância nos restitui à beleza das imagens primeiras”, faz do agora um tempo mais belo.
Compartilho aqui pequenos fragmentos da minha coleção que remetem ao chão da criança, lugar onde pais e educadores devem se colocar para respeitar o tempo e espaço delas:
“No piso do quintal, ladrilhado com cacos de cerâmica vermelha, via um elefante de três pernas, um navio, um homem de chapéu fumando cachimbo. Na manhã seguinte, as imagens haviam mudado: o homem de chapéu era um bolo mordido; o elefante, parte de um olho enorme – a tromba, um cílio -; o navio zarpara, deixando para trás apenas cacos de cerâmica vermelha no piso do quintal”. Antonio Prata em Nu, de botas
“…Deitada no assoalho de tábuas claras enceradas. Frescor de madeira contra pernas e peito. Espio embaixo de um móvel.
Sempre aquela tentação de procurar o escondido. O desejo da surpresa e o desinteresse pelo evidente demais.
Poeira e sombra. Movimento rápido, vento num rolo de poeira e fios. Vou descobrir, vou entender, vou tocar aquilo que se move e ali me chama. Algo cintila no escuro : um caco de vidro, um tesouro…um olho espiando? Eu sei, tenho certeza de que não é apenas um novelo de poeira e fios: está vivo e será meu.
Mas quando o estou quase alcançando chegam os passos rápidos da mãe onipresente, e o encanto se desfaz:
-Levanta daí, vai se sujar de novo, você acabou de tomar banho! Lya Luft em Mar de dentro
“Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.” Manoel de Barros em Memórias inventadas
“Naquele dia, assim que a chuva passou, fui como sempre brincar no quintal. Descalço, pouco me incomodando com a lama em que meus pés afundavam, gostava de abrir regos para que as poças d’água, como pequeninos lagos, escorregassem pelo declive do terreiro, formando o que para mim era um caudaloso rio. E me distraía fazendo descer por ele barquinhos de papel, que eram grandes caravelas de piratas.
Desta vez, o que me distraiu a atenção foi uma fila de formigas a caminho do formigueiro, lá perto do bambuzal, e que o rio aberto por mim havia interrompido. As formiguinhas iam até a margem e, atarantadas, ficavam por ali procurando um jeito de atravessar. Encostavam a cabeça umas nas outras, trocando idéias, iam e vinham, sem saber o que fazer. Algumas acabavam tão desorientadas com o imprevisto obstáculo à sua frente que recuavam caminho, atropelando as que vinham atrás e estabelecendo na fila a maior confusão”. Fernando Sabino em O menino no espelho
Está lançado o desafio: exercite o recordar de sua infância e perceba o efeito que isto pode produzir em você mesmo e ao seu redor. Isso vale também para os professores. Bom trabalho! E se quiser deixar nos comentários abaixo algumas de suas lembranças de infância, será uma alegria te incluir nesta coleção.
“O menino é pai do homem”.
William Wordworth
Abraço carinhoso
Ana Lúcia Machado