A brincadeira de comidinha é um clássico da infância que atravessa gerações de diferentes culturas e lugares do mundo. Basta um pedacinho de chão de terra, num parque, praça, no pátio da escola, no quintal de casa ou até mesmo a terra de um vaso de planta da varanda ou da sala.
É preciso também uma pá para escavar e recolher a terra, recipientes e água, para que então, as crianças coloquem a mão na massa no preparo de tortas, bolos e bolinhos. Suas mãozinhas hábeis não só imitam o ato de cozinhar assimilado pelo que veem na família e na escola, como usam a imaginação e criatividade para inventar novos formatos para as criações culinárias.
O bolo pode ser de aniversário, todo decorado, o preferido das crianças, mas também pode ser um bolo comum, apenas para o lanche da tarde, em um faz de conta cheio de encantamento.
Cada criança tem a sua receita. Algumas delas misturam uma medida de terra para meia medida de água. Se a consistência da massa ficar muito mole, elas acrescentam mais terra, ou se ficar muito seca, colocam mais água.
Algumas receitas incluem outros ingredientes, uma vez que na natureza a criança encontra à disposição uma gama de elementos naturais para enriquecer a brincadeira – folhas viram cobertura, sementes e flores viram decoração, gravetos viram vela para soprar na hora de cantar parabéns. E toda essa diversidade de materialidade da terra é estímulo multissensorial – diferentes texturas, cores, aromas, temperaturas e formas.
BRINCADEIRA DE COMIDINHA E SUA RESSONÂNCIA
É desta maneira simples que acontece a brincadeira de comidinha. A profundidade da experiência que essa brincadeira propicia é fantástica, cheia de aprendizado! Com ela as crianças aprendem sobre medidas, quantidades, pesos, proporções, e reações de misturas. A variedade de experiências possíveis é enorme – inclui investigar, testar, repetir, experimentar, classificar, denominar, servir.
A brincadeira de comidinha estimula o movimento da criança e gera uma multiplicidade de ações. Por meio dela a criança irá recolher os materiais, encher recipientes de terra e água, irá transportar os recipientes de um lugar ao outro, irá misturar, medir, acrescentar, derramar a água, etc.
Além disso, a brincadeira de comidinha aguça a capacidade analítica da criança ao avaliar quando é necessário acrescentar determinado ingrediente para alcançar seu objetivo. É uma brincadeira que também promove interações sociais intensas nas parcerias, compartilhamentos, conversas e negociações feitas no decorrer da brincadeira.
A pesquisadora da infância, Renata Meirelles, mostra a brincadeira de comidinha em seu livro ‘Cozinhando no quintal’. Com fotos e receitas feitas com flores caídas no chão, grama picada, entre muitos outros ingredientes, a publicação reafirma a potência do brincar na e com a natureza.
Renata e seu marido, o documentarista David Reeks, percorreram o Brasil de norte à sul durante dois anos, coletando registros das nossas crianças em suas brincadeiras de comidinha. O livro é emocionante e inspirador!
Outra publicação que mostra a brincadeira de comidinha, é o livro recém lançado pela Editora Ameli: ‘Livro da Lama: como fazer tortas e bolos’, de John Cage (Autor), Lois Long (Ilustradora).
Neste livro, temos o modo de preparo de diferentes receitas de bolos e tortas feitos de lama. Para os autores, pessoas apaixonadas pela terra, fazer uma torta de lama é nos conectar com a arte em um ato singelo e de criação, que une todas as crianças em suas mais diversas culturas e diferenças – um instante presente e especial particular pertencente a infância de cada um de nós.
A brincadeira de comidinha é uma brincadeira completa, rica e de uma simplicidade ímpar! É uma brincadeira que conecta a criança à natureza, desenvolve um senso estético e cria memórias afetivas de contato com a terra.
Que adulto não tem no baú de recordações da infância a lembrança dessa brincadeira? Da cozinha de casa para o quintal, carregávamos panelas, colheres de pau, pratos de porcelana e toalhinhas de renda para dar vida a comidinha de ‘mentirinha’ – o pulsar da verdade da cultura da infância. E alí no cantinho quintaleiro, instalávamos no chão de terra a nossa cozinha para o preparo de pratos que saciavam a fome da alma.
Hoje, conscientes da importância desse tempo lúdico, precisamos oportunizar essa brincadeira mágica para nossas crianças e acreditar que a natureza é o melhor brinquedo. Precisamos disponibilizar tempo livre, ambiente natural e acesso a utensílios de cozinha que não usamos mais, como peneiras, funis, forminhas, para tornar a brincadeira mais divertida. Precisamos facilitar a relação criança e natureza!
Vamos lá, mão na massa e bom apetite!
Abraços
Ana Lúcia Machado