Com esse desenvolvimento completo da oralidade infantil, a criança está pronta para adentrar o universo da escrita e tentar simbolizar a fala e seus pensamentos por meio de grafemas da língua escrita, aprendendo a operar com suas regras e elementos limitadores da tão rica expressão verbal. - Ana Mirtiz Veronezi
Entender o processo de alfabetização sob a perspectiva da Fonoaudiologia é uma maneira de ampliar o olhar para as necessidades da criança na primeira infância.
A criança nos primeiros anos de vida tem diante de si enormes desafios, desde colocar-se na posição vertical e andar até assumir a sua própria individualidade. Este é um dos períodos de maior aprendizado na vida da criança.
Entre tantas conquistas desafiantes, temos o aprendizado da leitura e escrita, que deve ser entendido como um processo respeitoso à individualidade e o tempo de cada criança.
Para elucidar o processo de alfabetização convidamos a fonoaudióloga Viviane Gilg¹, à frente da Clínica Expressão Fonoaudiologia desde 2009, que apontará aspectos importantes a serem observados por pais e educadores.
DESAFIOS DA CRIANÇA, AMBIENTE E INTERAÇÃO DOS MEDIADORES
A linguagem oral representa uma das aquisições mais significativas na vida de uma criança, é um dos marcos de desenvolvimento. A incapacidade e/ou dificuldade em se expressar e se comunicar por meio da fala pode gerar experiências frustrantes, colocando o indivíduo em provável desvantagem de desenvolvimento (por exemplo, nas habilidades psicossociais, de linguagem e de aprendizagem).
O desenvolvimento da linguagem acontece mesmo antes do bebê emitir palavras, por meio de vocalizações, olhares e gestos, e por meio da discriminação dos sons da fala do outro. Posteriormente, com a aquisição dos primeiros sons e por meio da interação, inicia-se a fase linguística (sons com significado). Esse processo, contínuo e complexo, também depende de condições neurobiológicas e ambientais apropriadas.
Assim, sabemos que, em geral, as crianças irão pronunciar as primeiras palavras ao redor dos 12 a 18 meses, aumentarão seu vocabulário entre 18 a 24 meses (respeitando as variações individuais). Aos 4 anos, espera-se que as crianças consigam construir frases sem muitos erros gramaticais.
Nessa mesma idade, muitas crianças são capazes de memorizar letras, escrever o próprio nome, até mesmo reproduzirem palavras inteiras. O que não significa maturidade para compreender a linguagem escrita e sim a habilidade de memória já desenvolvida.
Considerando que o processo de desenvolvimento da linguagem é contínuo, se dá por meio da combinação entre aspectos neurobiológicos, ambientais, ao acesso ao conhecimento e pela interação, sabe-se que a criança começa a ter oportunidades de construir conhecimentos importantes a respeito da linguagem escrita mesmo antes de saber formalmente a ler e escrever, por exemplo, ao conviver com pessoas que leem e escrevem e também ao ter acesso a materiais de leitura e escrita. Especificamente o desenvolvimento motor e linguístico irá desempenhar papel importante no processo formal de aprendizagem da leitura e da escrita, sabemos que a alfabetização é um processo bastante complexo.
A inserção da criança ao mundo formal de alfabetização permite um questionamento importante: ela está “preparada” para a alfabetização? Do ponto de vista do desenvolvimento da linguagem, sabemos que nem toda criança de 6 anos possui uma comunicação eficiente, sua estrutura de linguagem oral pode ainda estar contaminada por substituições, omissões por exemplo. Sua capacidade de construir frases complexas também. Contudo, temos exemplos de crianças com 4 anos que já apresentam domínio da linguagem oral.
O QUE CONTRIBUI PARA O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO?
O estímulo ao desenvolvimento de habilidades e competências para desenvolver a leitura e escrita nos parece uma forma mais respeitosa ao nível de desenvolvimento da criança e consegue respeitar as características singulares, individuais e ambientais de cada uma. Crianças em idade pré-escolar estão em pleno desenvolvimento, exercitar a compreensão dessa complexidade que é a linguagem oral, estimular a leitura como algo prazeroso desde cedo, são atitudes importantes que enriquecerão e trarão mais chances de sucesso ao processo de alfabetização e, inclusive, de constituição do sujeito.
Entre os quatro e seis anos é possível despertar o interesse da criança pela leitura e escrita, o que proporcionará um início do processo de alfabetização mais natural, com o letramento do aprendiz ocorrendo em seguida, sem necessariamente haver uma alfabetização formal.
Antes dos seis anos, é comum a criança não diferenciar letras de desenhos, ao passo que aos sete, oito anos já percebe até mesmo a presença da nasalidade dos sons e aí já é possível conseguir diferenciá-los na grafia. Essa distinção entre letras e desenhos é uma possível pista de “prontidão” para aprendizagem (embora muitos autores não concordem com o termo “prontidão”).
Conforme descrito por VERONEZI² (2011): “com esse desenvolvimento completo da oralidade infantil, a criança está pronta para adentrar o universo da escrita e tentar simbolizar a fala e seus pensamentos por meio de grafemas da língua escrita, aprendendo a operar com suas regras e elementos limitadores da tão rica expressão verbal”.
O QUE A PRESSÃO E ACELERAÇÃO AO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO PODE ACARRETAR?
Observamos que inserir a criança antecipadamente em um processo formal de alfabetização pode ser, no mínimo, desrespeitoso à ela, pois etapas importantes de seu desenvolvimento (cognitivo, sensório motor, de linguagem e da audição) serão suprimidas e como consequências, recebemos nos consultórios clientes com as mais variadas queixas: fracasso escolar, incapacidade de acompanhar o aprendizado, confusão de letras, dispersão, por exemplo. Também está presente o risco de rotular precocemente a criança sendo portadora, por exemplo, de Dislexia, Transtorno e Déficit de Atenção e Hiperatividade (problemas esses que são reais, desde que diagnosticados de maneira adequada).
Leia também: Por que não alfabetizei meu filho antes dos 7 anos e as 6 consequências da alfabetização precoce
É importante que o trabalho educativo com crianças em idade pré-escolar, do ponto de vista do desenvolvimento da linguagem, considere para além da idade cronológica da criança, considere seu desenvolvimento psicobiológico, proporcione e estimule as habilidades como consciência fonológica, atividades lúdicas de fala e linguagem, atenção sustentada, memória operacional, relações entre codificação e decodificação de sons e memória auditiva, por exemplo.
Respeitar o desenvolvimento da criança
proporciona à ela e ao seu processo de aprendizagem o fortalecimento de autoconfiança, segurança em executar tarefas, capacidade de observar e entender o erro e tentar sua (re)construção, evitando que esse período seja de frustrações e de sentimentos de incapacidade, o que pode interferir negativamente em seu desenvolvimento futuro.
Abraço carinhoso
Ana Lúcia Machado
¹VIVIANE GILG DA SILVA GONZALEZ – Graduada em Fonoaudiologia pela PUC/SP, pós-graduada em Voz. Experiência de mais de 18 anos em Fonoaudiologia Clínica. Atuação em Treinamento e Desenvolvimento em Comunicação Humana, planejamento e atuação em palestras, oficinas, treinamentos.
² A ALFABETIZAÇÃO PRECOCE E PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA – Ana Mirtiz Veronezi – PUC Paraná