Somos responsáveis pela cobrança de uma cadeia produtiva ética, que promova o desenvolvimento e bem estar social, de uma cadeia livre de trabalho infantil, trabalho escravo e tráfico humano.
Propomos aqui uma análise da relação do trabalho infantil com o consumo consciente. Para isso apresentaremos três importantes indústrias, a têxtil, do chocolate e a tecnológica.
A despeito dos programas voltados à erradicação do trabalho infantil, pesquisa divulgada pela OIT – Organização Internacional do Trabalho, constata que ainda há 168 milhões de crianças trabalhando no mundo, sendo que 85 milhões atuam nas piores formas, muitas vezes em condições sub humanas. Talvez esses números não revelem o tamanho real desta ferida social, pois há muita coisa difícil de ser monitorada, fiscalizada e quantificada mundo afora.
No Brasil a mão de obra infantil está estimada em 2,6 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) , do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Elas podem ser encontradas em serviços domésticos, na agricultura, no comércio informal, nos semáforos como malabares, vendedores de bala, nas feiras livres, nos lixões, em carvoarias e madeireiras.
Vários mitos tentam justificar o trabalho infantil, tais como: é melhor ver crianças trabalhando do que vê-las se drogando ou roubando, que o trabalho dignifica o homem e deve acontecer desde cedo para a formação de adultos trabalhadores e progresso da nação.
Muitos pais ainda acham que assim como um dia eles próprios ajudaram nas despesas em casa, seus filhos também devem repetir esse ciclo. É necessário desfazer o mito de que o trabalho precoce pode contribuir para o desenvolvimento humano e social, pois isso é uma grande mentira.
A sociedade precisa se conscientizar que o trabalho infantil causa danos enormes sobre o aspecto físico, emocional, intelectual e social da criança, que é um ser ainda em formação. Ele perpetua o ciclo da pobreza e miséria, e compromete o desenvolvimento humano e social. Para que possa se desenvolver integralmente, a criança precisa antes de trabalhar, brincar livremente, se socializar com outras crianças, estudar e aprender.
Temos muitas entidades e instituições organizadas na luta pela erradicação do trabalho infantil no Brasil e no mundo. Aqui, a Rede Peteca – Chega de trabalho infantil é uma delas. Trata-se de uma plataforma de comunicação que promove os direitos da criança e do adolescente, disseminando informações relevantes para a conscientização da sociedade e seu engajamento em prol desta causa. Além da Rede Peteca, há também o FNPETI – Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, entre outras.
Muitas vezes a questão do trabalho infantil parece algo distante de nós, mas basta circular pela cidade para constatar a presença de crianças trabalhando em feiras livres, tomando conta de carros, lavando para-brisas nos semáforos. Quantas vezes em restaurantes não somos abordados por crianças que escapam aos olhos do gerente e acabam entrando e circulando entre as mesas vendendo flores, panos de prato, etc…?
Mas o que tenho a ver com isso?
Parecemos ignorar que, por trás de tudo aquilo que consumimos, desde o alimento que colocamos na mesa, passando pelas roupas e sapatos que usamos, até os celulares que seguramos nas mãos, subjaz uma longa cadeia produtiva que envolve milhares de seres humanos, legislações trabalhistas, ambientais e sociais que devem ser cumpridas, hábitos de consumo da sociedade, etc…
Desta forma não podemos nos eximir da responsabilidade sobre esta triste realidade. Não podemos achar que essa questão não nos diz respeito e que não é um assunto que nos envolve pessoalmente. A falta de empatia nos torna cúmplices e perpetuadores desse câncer social.
Como consumidores devemos questionar a procedência dos produtos adquiridos por nós, procurar conhecer em que condições são produzidas as coisas que compramos. Quem faz as roupas que usamos? Onde essas roupas são produzidas e em quais circunstâncias? E os alimentos que comemos, e os objetos que compramos?
Somos responsáveis pela cobrança de uma cadeia produtiva ética, que promova o desenvolvimento e bem estar social, de uma cadeia livre de trabalho infantil, trabalho escravo e tráfico humano.
Basta analisarmos a indústria têxtil, do chocolate e a tecnológica para constatarmos que cada um tem sua parcela de responsabilidade enquanto consumidor.
Com que roupa eu vou?
O Brasil é a quinta maior indústria têxtil do mundo. Segundo dados da ABIT – Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção), a indústria têxtil gera um faturamento anual de 53,6 bilhões de dólares (166 bilhões de reais) e emprega mais de 1,6 milhão de trabalhadores, distribuídos nas 33 mil empresas instaladas pelo país.
Dados levantados em 2015 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), apontam que 3,8% de crianças e adolescentes que trabalham no Brasil estão na indústria têxtil, trabalhando em pequenos núcleos familiares. Familiar aqui não pode ser entendido como sinônimo de aconchegante, pois na verdade o cenário que se vê na maioria das vezes é um ambiente bem hostil e inóspito para a infância.
Um relatório do Overseas Development Institute sobre o trabalho infantil em Bangladesh, revelou crianças de 6 a 14 anos que trabalham na indústria têxtil mais de 60 horas semanais, com baixíssima remuneração, aumentando o lucro de grandes empresas inescrupulosas.
Em 2013 na capital de Bangladesh, uma grande tragédia revelou ao mundo o lado obscuro da indústria da moda, que evidenciou o apetite voraz das grandes marcas por altos lucros e dos consumidores pela moda descartável, por roupas de baixo custo. Um prédio onde funcionava uma fábrica de tecidos que produzia para grifes globais desabou, matando mais de 1.000 pessoas e deixando aproximadamente 1.300 feridas.
O alerta deu origem ao movimento mundial Fashion Revolution, que visa conscientizar a sociedade sobre o funcionamento da indústria da moda, no intuito de provocar mudanças. No Brasil, o movimento é atuante e tem sensibilizado centenas de pessoas em campanhas como a FASHION EXPERIENCE: CONSUMO CONSCIENTE CONTRA O TRABALHO INFANTIL
(Fonte de Informações Rede Peteca)
O chocolate nosso de cada dia
Diariamente alimentamos uma indústria que só vem aumentando seu lucro ano a ano. O brasileiro consome 2,5 quilos, em média, de chocolate por ano, representando o quinto maior mercado de alimento no mundo, com faturamento de R$ 12,4 bilhões em 2015, dados fornecido pela Abicab – Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e Derivados, e divulgado em matéria publicada pelo Valor Econômico.
http://www.valor.com.br/empresas/4861618/fabricantes-de-chocolate-esperam-pascoa-ate-10-mais-gorda
A indústria do chocolate está diretamente ligada a uma triste realidade de escravidão, exploração infantil e tráfico de crianças nas fazendas de cacau na Costa do Marfim, país responsável por aproximadamente metade de toda a produção mundial de cacau.
Crianças entre 11 e 16 anos, muitas até menores que isso, estão confinadas em plantações de cacaueiros, forçadas a trabalhar de 80 a 100 horas semanais em condições precárias, desprovidas completamente daquilo que entendemos que deva ser chamado como infância.
Empresas como a Nestlé, Barry Callebaut e Mars assinaram em 2001 o Protocolo do Cacau, comprometendo-se a erradicar totalmente o trabalho infantil no setor até 2008. Como já era esperado, a meta não foi atingida, e o prazo para cumprimento do acordo foi prorrogado.
Apesar da declaração de altos investimentos pelas empresas produtoras de chocolate, governos e organizações especializadas em prol da erradicação do trabalho infantil, e do tráfico de crianças no mercado internacional de cacau, pouca coisa mudou efetivamente.
O premiado jornalista dinamarquês Miki Mistrati, num documentário tocante, “O lado negro do chocolate”, denunciou a indústria do chocolate que sustenta o tráfico de crianças nas fronteiras da Costa do Marfim e a sua escravidão nas plantações de cacau.
Neste documentário foram entrevistados tanto os mantenedores quanto os combatentes deste tipo de prática. Câmeras escondidas e identidades falsas foram usadas para vasculhar e revelar ao mundo as condições desumanas que milhares de crianças são submetidas. O documentário mostra as evasivas dos proprietários das empresas fornecedoras de matéria prima e dos representantes das empresas produtoras de chocolate.
O mundo digital que desfrutamos
Você sabia que para termos as baterias de nossos celulares, computadores, etc…, milhares de crianças sofrem trabalhando nas minas de extração do cobalto na República do Congo?
A República Democrática do Congo é um dos países mais pobres do mundo, entretando é rico em recursos minerais. Produz 60% do cobalto usado em todo o mundo. Este minério é um componente essencial na produção de baterias dos smartphones e computadores portáteis de marcas como a Apple e Samsung.
Boa parte do cobalto é extraído à mão e vendido a comerciantes americanos e chineses, que procuram o melhor preço sem questionar sua origem, bem como sua forma de extração.
Existem milhares de minas clandestinas, onde homens, mulheres e crianças trabalham sob condições de escravidão. Crianças de apenas 8 anos chegam a trabalhar 12 horas por dia, a maioria sem sapatos, nem luvas ou máscaras, sob qualquer condição climática, seja sol intenso ou chuva forte, carregando sacos pesados, sofrendo ameaças e agressões físicas. Totalmente expostas aos efeitos danosos à saúde que o cobalto e seus vapores provocam.
No link abaixo você pode assistir um comovente vídeo mostrando as atrocidades vivenciadas por crianças nas minas de cobalto:
Https://www.youtube.com/watch?v=op3FkZ4_DFQ
Este é um convite para uma grande reflexão. Vivemos em uma sociedade repleta de desigualdades, explorações, ausência de oportunidades e muita carência, ao mesmo tempo em que testemunhamos muita fartura, excessos, e sobras.
Acredito que a educação seja ainda a forma mais eficaz de combater todos esses transtornos que afligem a humanidade, causados pela sociedade contemporânea que vive de forma automática no dia a dia, sem questionamentos sobre o por quê das coisas serem como são, funcionarem deste ou daquele modo.
Ao refletirmos um pouco sobre a obra de Ítalo Cavino, Cidades Invisíveis, publicada em 1972, nos daremos conta que tal qual a cidade de Leônia, não percebemos mais os custos sociais e ambientais deste mundo permanentemente faminto por invenções e inovações, cego pelo desejo do último modelo da última geração, dando valor aos bens imediatos em detrimento aos bens duráveis, produzindo e amontanhando lixos e dejetos, descartando coisas que rapidamente se tornam obsoletas pela sociedade consumista.
Fica aqui um trecho deste livro que mostra que qualquer semelhança não é mera coincidência.
“A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias: a população acorda todas as manhãs em lençóis frescos, lava-se com sabonetes recém-tirados da embalagem, veste roupões novíssimos, extrai das mais avançadas geladeiras latas ainda intatas, escutando as últimas lengalengas do último modelo de rádio.
Nas calçadas, envoltos em límpidos sacos plásticos, os restos da Leônia de ontem aguardam a carroça do lixeiro. Não só tubos retorcidos de pasta de dente, lâmpadas queimadas, jornais, recipientes, materiais de embalagem, mas também aquecedores, enciclopédias, pianos, aparelhos de jantar de porcelana: mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas. Tanto que se pergunta se a verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e diferentes, e não o ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente. O certo é que os lixeiros são acolhidos como anjos e a sua tarefa de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeito silencioso, como um rito que inspira a devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas.
Ninguém se pergunta para onde os lixeiros levam os seus carregamentos: para fora da cidade, sem dúvida; mas todos os anos a cidade se expande e os depósitos de lixo devem recuar para mais longe; a imponência dos tributos aumenta e os impostos elevam-se, estratificam-se, estendem-se por um perímetro mais amplo. Acrescente-se que, quanto mais Leônia se supera na arte de fabricar novos materiais, mais substancioso torna-se o lixo, resistindo ao tempo, às intempéries, à fermentação e à combustão. E uma fortaleza de rebotalhos indestrutíveis que circunda Leônia, domina-a de todos os lados como uma cadeia de montanhas.
O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros.
A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lado de lá de sua cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem para longe montanhas de detritos. Talvez o mundo inteiro, além dos confins de Leônia, seja recoberto por crateras de imundície, cada uma com uma metrópole no centro em ininterrupta erupção…”
Boa reflexão
Abraço carinhoso
Ana Lúcia Machado